quinta-feira, 21 de julho de 2011

Alegria de servir



A ALEGRIA DE SERVIR

Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 2,5)

1) Paulo em Filipos: O anúncio do Evangelho numa grande cidade.
             Paulo levou o Evangelho aos filipenses, possivelmente, durante a segunda viagem missionária (cf. At-15,36–18,17), por volta do ano 48 d.C. A cidade, fundada em 360 aC. pelo general ateniense Calístrato de Afidna, no vale sul do monte Órbelos (atualmonte Lekani) na Macedônia oriental, recebeu o nome de Krénides (em grego, “fontes”), por causa das muitas fontes do rio Angites. Posteriormente, ameaçada por tribos vizinhas, em 356 a.C pediu auxílio a Filipe II, rei de Macedônia, pai de Alexandre Magno. Felipe II apoderou-se das minas de ouro ali existentes e refundou a cidade dando-lhe seu próprio nome. Filipos era uma porta de entrada para Europa, pois a cidade estava situada numa posição estratégica atravessada pela Via Egnatia [1], rota principal para o porto de Neápoles. Em 42 AEC, a cidade foi convertida em importante “colônia romana” (cf. At 16,12), uma espécie de Roma em miniatura, cujos cidadãos gozavam de privilégios (ius italicum) semelhantes aos da capital, como por exemplo, estar livres de impostos e com direito de governar-se por magistrados próprios, chamados de pretores. O orgulho de possuir esses privilégios era uma forte característica dos filipenses.
            Paulo chegou a Filipos, em companhia de Silas, sem conhecer ninguém na região. Os judeus ali residentes deviam ser poucos, pois não havia edifício para assembléia litúrgica (sinagoga), mas reuniam-se à margem de um rio (cf. At-16:12-13), possivelmente tratava-se do Angites ou de uma de suas fontes. Ali Paulo encontrou Lídia (cf. At-16:14), uma comerciante de púrpura, que era “temente a Deus”. Depois de aceitar o evangelho e fazer-se batizar, Lídia ofereceu sua casa para que servisse de alojamento aos missionários, providenciando dessa forma uma base para a missão (At-16:15,40). A “casa” de Lídia parece ter sido mais que uma residência; certamente era também seu local de trabalho. O termo “casa” incluía a família, parentes próximos e se estendia aos escravos e a todos que ali trabalhavam.

a) Os desafios de uma grande cidade:
            - Pluralismo religioso Segundo o relato de At-16:16, em Filipos, Paulo curou uma escrava que estava sob o domínio de um “espírito pitônico” (de Píton, divindade grega muito cultuada na época). Na mitologia grega, Píton era uma serpente ou dragão que vivia na região de mesmo nome, ao pé do Monte Parnaso, e da qual se afirmava que guardava o oráculo de Delfos. Narra o mito que Apolo matou essa grande serpente para adquirir seu espírito de adivinhação. Assim, era denominada pitonisa toda mulher que tivesse o dom de prever o futuro ou fosse sacerdotisa de Apolo. A expressão “temente a Deus” para designar Lídia em At-16:14 revela uma categoria religiosa bem específica. Temente a Deus era uma pessoa gentia (não judia) que simpatizava com o judaísmo e participava do culto na sinagoga. Os “tementes a Deus” estavam familiarizados com o Antigo Testamento (na versão grega – LXX) e com as práticas judaicas do amor ao próximo, da observância do Decálogo (dez mandamentos), da doação de esmolas, da santificação do tempo (orações em horários definidos) e praticavam o monoteísmo ao Deus de Israel.
            Ao afirmar que não havia edifício para sinagoga, mas que os judeus residentes em Filipos se reuniam aos sábados à margem de um rio (cf. At 16,12-13), o texto bíblico refere-se possivelmente à existência de judeus helenistas. Estes eram diferentes dos judeus de Jerusalém e arredores. Os judeus helenistas tinham por idioma o grego e viviam espalhados nas regiões ao longo do império romano, na Diáspora [2]. Eles tinham uma mentalidade mais aberta porque estavam constantemente em contato com outras culturas. Mesmo fora da Terra Prometida, eles cumpriam as normas fundamentais da fé judaica, apesar de não serem tão estritos nos detalhes. Após a passagem de Paulo por Filipos, surgiu também nessa cidade o grupo dos seguidores de Jesus. O novo grupo, provavelmente era formado por judeus helenistas, por “tementes a Deus” e por ex-adoradores de divindades do império romano.

- Exploração
            Da mesma forma que acontecia com Jesus nos evangelhos, com a proclamação de Paulo e Silas sobre a chegada do Reino de Deus, as trevas cederam lugar à luz (cf. Mc-1:25; 3:12; Lc-4:35; At-16:16-18). A jovem foi libertada do espírito de adivinhação. Antes ela era totalmente alienada, ou seja, não era dona de si, mas possuída pelo espírito pitônico e pelos donos que a exploravam obtendo muitos lucros à custa dos oráculos que ela proferia (At-16:16). Não se menciona o nome dela, mas apenas sua condição de escrava.

- Violência
            Indignados por perderem seus lucros, os donos da escrava desencadearam forte perseguição contra Paulo e Silas. Agarraram os dois, os arrastaram e os levaram à praça da cidade (At-16:19). Usaram o preconceito contra os judeus (anti-semitismo) para acusar os missionários de não respeitarem os costumes romanos (At-16:20-21) o que provocou o ódio da multidão. Paulo e Silas foram açoitados e levados à prisão. Também tiveram seus pés presos no tronco que ficava no fundo da prisão (At-16:22-24). E tudo que eles tinham feito era devolver a dignidade de uma pessoa. Mas a sede de lucro não podia suportar isso sem uma reação acompanhada de diversos tipos de violência.
 b) Características da Igreja de Filipos:
      É provável que entre o episódio da conversão de Lídia (At-16:13-15) e os acontecimentos que motivaram a violência contra os missionários (At 16,16-24), tenha se passado algum tempo. A carta aos Filipenses menciona vários colaboradores que ajudaram Paulo na evangelização (cf. Fl-2:25; 4:3). Isto pressupõe uma comunidade florescente que não teria sido possível sem uma estadia prolongada dos apóstolos na cidade. A narrativa de Lucas teria saltado do episódio inicial, conversão de Lídia, ao episódio final, a violência contra Paulo e Silas e o “convite” para que ambos se retirassem da cidade. Portanto, ao saírem da cidade, Paulo e Silas deixaram uma igreja formada. Entre as pessoas que colaboraram com os missionários estão algumas mulheres. Em Fl-4:2-3, Paulo roga a Evódia e a Síntique que se ponham em harmonia no Senhor (a expressão grega pode ser traduzida por “sentir” ou “pensar” (cf. Fl-2:2). São mulheres evidentemente de destaque na comunidade. Paulo se dirige a ambas recordando o fato de que haviam colaborado com ele tanto quanto Clemente. O verbo que descreve a ação dessas mulheres é synathléo (que significa “esforçar-se ao mesmo tempo junto com alguém”) usado por Paulo apenas em Filipenses, nessa passagem 4:3 e em 1:27 quando se esforçam juntos para manter a fé.
            O verbo synathléo era usado na linguagem cotidiana para exprimir a luta penosa e até mesmo a morte com que os gladiadores estavam submetidos no circo romano. Isso mostra o valor dessas mulheres e dos filipenses em geral. Talvez, por causa de tanto empenho, não despercebido por Paulo, o apóstolo manifeste a ternura que não foi tão enfatizada nas outras cartas. Pois logo no início, na ação de graças pela comunidade, afirma: “Deus é testemunha das saudades que tenho de todos vós, com a ternura de Cristo Jesus” (Fl-1:8). Inclusive, Timóteo, o co-autor da epístola, é a pessoa mais indicada para levar a carta, por causa da sinceridade com que ama tanto a Paulo quanto aos filipenses (Fl-2:19-23). Destinatários da carta também demonstraram muita ternura para com o apóstolo ao enviarem Epafrodito com um donativo para o sustento de Paulo enquanto estivesse preso (Fl-4:18).

2) A Carta aos Filipenses [3]
            A epístola foi escrita para que os filipenses se mantivessem na fé genuína e no seguimento de Jesus, ou seja, que os destinatários produzissem o fruto da justiça para a glória de Deus (Fl-1:9-11). A expressão “frutos da justiça” significa ajustar-se ao que Deus Pai espera do seguidor de Jesus.

a) A situação de Paulo ao escrever a carta:
            Paulo afirma que escreve da prisão (1:7.13.17), na qual se encontra por causa do evangelho. Algumas passagens da carta levam a pensar que ele estava em perigo de morte iminente (1:21–24). Em Atos dos Apóstolos temos o relato de três lugares onde Paulo esteve preso: em Filipos (At-16:23–40), em Cesaréia (At-21:32–26,32) e em Roma (At-28:16–31). Mas Paulo afirma que foi preso muitas vezes (2Cor-11:23). A maioria dos estudiosos é de opinião que Paulo estava preso em Éfeso quando escreveu aos filipenses. Essa hipótese baseia-se em inferências de 1Cor-15:32 e na proximidade geográfica entre Éfeso e Filipos. Mas, que tipo de detenção poderia estar sofrendo Paulo enquanto escrevia aos filipenses? Em Filipos foi levado para o fundo da prisão e atado a um tronco. Mas isso só aconteceu porque não tinham conhecimento de que ele era cidadão romano. De fato, os cidadãos romanos tinham direito a um tipo de prisão, chamada custodia libera, ou liberdade vigiada. A custódia publica detenção penal, era para aqueles que não possuíam cidadania. O cidadão romano podia escolher a residência na qual ficaria em prisão domiciliar. E o soldado que o vigiava tinha que acompanhá-lo em todas as horas e se saíssem à rua deveria mantê-lo preso com uma corrente. As notícias sobre a prisão de Paulo chegaram aos filipenses que lhe enviaram uma doação através de Epafrodito (Fl-2:25; 4:18). Depois que se encontrou com Paulo, Epafrodito ficou doente e demonstrou muita preocupação (Fl-2:26) por não poder retornar logo a Filipos com notícias. Paulo pretendia enviá-lo junto com Timóteo para esclarecer toda a situação aos filipenses (Fl-2:23).
b) O motivo da carta
            Quando Paulo recebeu a doação vinda dos filipenses, trazida por Epafrodito (Fl- 2:24–4:18) resolveu escrever, possivelmente durante o ano 54, para agradecê-los e também para orientar seus destinatários sobre que atitudes tomarem com relação aos judaizantes. Paulo temia que os novos convertidos fossem afastados da fé cristã, seja pelos judaizantes, seja pelos pagãos.

3) A teologia da kénosis:
            O Hino Cristológico de Fl-2:6-11 é chamado de Hino da Kénosis, de kenós, termo grego que significa “vazio”. Esse título, com o qual o poema ficou conhecido na história da teologia, foi derivado do verbo kenóo encontrado em Fl-2:7 e que significa “privar-se de poder” ou “abdicar do que possui”. Esse termo caracteriza toda a vida de Jesus, o Filho de Deus como alguém que não se apegou à sua condição divina e ao entrar nas esferas da história e da criação, assumiu as limitações desses âmbitos, até as últimas conseqüências, inclusive ficando à mercê do egoísmo e violência humana, que o levaram à morte terrível na cruz. A maioria dos estudiosos está de acordo que o Hino da Kénosis não é de autoria paulina, mas fazia partia da Liturgia Eucarística. Isso significa que uma das teologias mais profundas do Novo Testamento teve sua fonte num hino litúrgico para celebrar o mistério pascal. E, como o mesmo hino foi usado por Paulo como expressão de uma reta compreensão de Deus em seu mistério, isso manifesta que o mesmo poema retrata uma profunda experiência mística do Apóstolo. Finalmente, ao usar o hino como exortação aos filipenses significa que Paulo faz da teologia da kénosis o fundamento da práxiscristã configurada à práxis de Cristo.


a) A kénosis como modo de ser de Jesus de Nazaré que revela o modo de ser de Deus.
            Paulo se utiliza do hino para falar da vida de Jesus, para mostrar a maneira como Jesus viveu a sua humanidade. E o modo concreto como Jesus viveu é a fonte e o critério para toda teologia que tenha a pretensão de ser realmente cristã. A vida terrestre de Jesus, o Filho de Deus, se manifestou a nós como kenótica, foi isso que as primeiras testemunhas cristãs transmitiram a Paulo e que ele nos mostra no hino. Porque a kénosis não é apenas um aspecto, mas a totalidade da vida de Jesus; Paulo nos apresenta esse modo de viver como o paradigma de vida para o cristão. De fato, a vida terrestre de Jesus se identifica como um modo de ser referido ao outro, uma vida descentrada de si, a serviço. Jesus viveu a vida humana perdendo-a, esvaziando-se, renunciando totalmente a si mesmo. Foi uma vida desfigurada, humilhada. Pode-se pensar que a kénosis é um aspecto pontual, uma etapa passageira na vida de Jesus, que se identifica apenas com sua paixão e morte. Mas, a kénosis é um modo de ser, é algo que afeta a totalidade de sua existência. Uma vida que foi reconhecida, após a ressurreição, como kenótica e exaltada. Pois não podemos separar o kenótico do Ressuscitado. Com a ressurreição se revela uma condição divina, que a condição humana de servo não deixava transparecer.
            O Ressuscitado é o Senhor, mas é a vida humilhada que reinterpreta esse título e dá-lhe um sentido totalmente diferente do que se pensa, nos padrões terrenos, sobre o significado de alguém ser chamado de Senhor. Com a ressurreição transparece naquela vida totalmente descentrada de si no outro e em Deus, uma relação única com Deus a ponto de Jesus Cristo ser reconhecido como seu Filho unigênito. E por causa da unidade indissolúvel que vem dessa relação entre Jesus e o Pai, entre o humano e o divino é que a kénosis diz algo a respeito de Deus em si mesmo. Ela nos revela a verdadeira intimidade do ser de Deus. A kénosis manifestada em Jesus torna acessível a nós o mistério antes escondido em Deus. Assim, por meio da vida kenótica de Jesus se revela que o esvaziamento tem suas raízes na Trindade. A kénosis não é apenas uma maneira de ser humano, mas a maneira de ser de Deus. Dessa forma, o conceito de Deus se torna inseparável da realidade kenótica, o que significa um duro golpe na maioria de nossas concepções de Deus.
b) A kénosis de Paulo à luz da kénosis de Cristo.
            O hino da Kénosis, unido à experiência pessoal de Paulo com o Ressuscitado, deu ao apóstolo um entendimento mais profundo sobre a pessoa e a obra de Cristo. Esse entendimento ajudou Paulo a manter-se fiel e lúcido nas circunstâncias difíceis pelas quais estava passando. Ele estava em prisão domiciliar e enfrentava a possibilidade de uma morte iminente (Fl-1:7.12-16; 3:8-14). E o evangelho, anunciado por ele, estava sendo ameaçado por pregadores ambiciosos (Fl-1:15-17; 2:20-21; 3:18-19). Contudo, não há nenhuma tristeza ou melancolia nessa Epístola. Pelo contrário, alegria e regozijo são proeminentes (Fl-1:4.8.25; 2:2.17-18.29; 3,1; 4,1.4.10). Paulo enfrenta as circunstâncias adversas com uma fé nascida não somente do sustento e provisão que recebeu de Deus, no passado, mas também de uma esperança viva no futuro. Sua fé está baseada no próprio Senhor Ressuscitado que a ele se manifestou, com todo conhecimento decorrente desse encontro que transformou sua vida, de modo que ele pode se referir a coisas altamente estimadas, nos padrões terrenos, como sendo lixo (Fl-1,19-26; 3,4-11.20-21). Paulo estava, de fato, preso a valores que o faziam regozijar-se por viver nessas circunstâncias terríveis porque elas lhe deram a oportunidade para a proclamação de Cristo (Fl 1,12-14). Essa atitude foi expressa no versículo de abertura da Epístola por uma autodesignação de Paulo: “servo” (grego: doûlos). Enquanto Paulo costumeiramente estabelece a sua autoridade como apóstolo em outras cartas (Rm 1,1;1Cor 1,1; Gl 1,1; Ef 1,1; Cl 1,1), nessa epístola ele se denomina simplesmente servo (junto como seu colaborador Timóteo). Longe de impedi-lo de evangelizar, a prisão de Paulo proporcionou a divulgação de sua fidelidade a Cristo e ao evangelho porque todos ficaram sabendo de suas “algemas”. Esse episódio serviu de encorajamento a muitos irmãos que pregavam o evangelho com ousadia. Por isso Paulo tem certeza de que qualquer decisão do tribunal a seu respeito será motivo para glorificar aquele a quem serve. Cristo será engrandecido seja pela vida de Paulo (libertação da prisão), seja por sua morte (condenação). Em vista do engrandecimento de Cristo, Paulo considerou como lixo tudo o que apreciava como valioso. Por causa de Cristo, Paulo perdeu tudo, todas as coisas importantes de sua vida anterior, para ganhar a todos para Cristo. Isso só foi possível porque Paulo aprendeu a viver a fidelidade em qualquer situação, fosse de tristeza ou de alegria. Mas Paulo ainda não era perfeito, ele corria para alcançar a Cristo, já que fora alcançado por ele. Paulo necessitava evoluir e avançar em direção à perfeição de Cristo.
            O Apóstolo se vê seguindo o caminho do serviço, que foi estabelecido pela vida de Cristo, especialmente nas circunstâncias perigosas em que estava vivendo. É a vida concreta de Jesus que dá sentido à vida de Paulo, por isso o Apóstolo se refere à sua comunhão com o sofrimento do Senhor e com a morte dele (Fl 3,10). É nesse espírito que Paulo pode apontar a si mesmo e dizer, sem traço de arrogância ou orgulho: “Sejam meus imitadores” (Fl 3,17). A vontade de Paulo é colocar de lado todos os direitos e privilégios pessoais, para se submeter, no espírito de serviço, às necessidades e interesses dos outros, isso é o coração dessa carta. De um lado, vemos como Paulo é um servo fiel de Cristo, de outro, os filipenses são, como ele, convocados a mostrar essa atitude de serviço como seguidores de Cristo
c) A Kénosis de Cristo: o paradigma para a vida cristã.
            Cristo esvaziou-se, sendo de condição divina, renunciou aos privilégios dessa condição e assumiu uma existência humana como servo, morrendo na cruz. Por isso Deus o exaltou acima de tudo e todos para que ele reine sobre todas as realidades. A glorificação de Cristo será vista totalmente no Dia de Cristo, quando a obra de Deus será plena. Até lá, todos estão num processo rumo à plenitude (para alcançar o Cristo). A vida de Paulo segue o exemplo de Cristo. Os filipenses devem fazer o mesmo que Paulo, ou seja, ter os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 2,5), pois a eles foi dada a graça de sofrer com Cristo. Paulo costuma fazer apelos às comunidades para que se comportem verdadeiramente como cristãs (Ef 4,1; Cl 1,10; 1Tss 2,12), mas no imperativo endereçado aos filipenses sai de seu vocabulário habitual e usa um termo técnico (1,27) que significa “desempenhem sua obrigação como cidadãos” ou “cumpram sua obrigação para com a sociedade”.
            Os filipenses eram orgulhosos de seu status de cidadãos romanos e poderiam entender a expressão de Paulo como se referindo às suas obrigações para com a cidade. Mas Paulo não os convocou a ser simplesmente bons cidadãos, mas a cumprirem suas obrigações para com a Comunidade Cristã. Paulo não explica imediatamente o que essa obrigação requer, mas já se constrói uma expectativa que está relacionada, de algum modo, às circunstâncias extremas sugeridas pela sua referência ao sofrimento suportado tanto pelo remetente quanto pelos destinatários (Fl 1,29-30). Esse chamado à cidadania própria do Evangelho é reforçado pelos primeiros versículos do capítulo dois quando o amor, a compaixão e o sentido de comunidade, que vêm de Cristo, são usados como base para um renovado apelo à unidade. O problema da comunidade de Filipos é finalmente revelado como egoísmo e arrogância (Fl 2,3). A dissensão interna está ameaçando o amor, a unidade e o companheirismo na comunidade (Fl 2,14; 3,18-19; 4,2). Enquanto a causa desses problemas não é revelada, a solução proposta por Paulo é um ordenamento da forma de vida de cada um. Prioridades devem ser eleitas de acordo com um conjunto de valores que coloquem o bem-estar e os interesses dos outros acima dos interesses egocêntricos (Fl 2,3-4), uma humildade que surja da natureza mesma do ser cristão. Isso traria duas implicações: (1) os filipenses cumpririam seus deveres para com a Comunidade de fé como cidadãos do Reino de Deus; (2) a própria Comunidade seria construída em torno a um conjunto de valores e interesses diferentes daqueles que são próprios do “mundo” (Fl 3,17-20). O hino da Kénosis nesse contexto literário dá expressão ao apelo de Paulo para a realização do servir cristão.

d) Os judaizantes: antítese da kénosis de Cristo.
            Alguns cristãos não aprenderam a lição da kénosis de Cristo e anunciam o evangelho por inveja ou por rivalidade. Os judaizantes consideravam a circuncisão da carne, com todo o compromisso de observância da Lei que isso encerrava, mais importante que a cruz e a ressurreição de Cristo; entendiam a salvação como obra puramente humana e carnal, e não a obra redentora de Deus através do Cristo. Os judaizantes se apegavam a tudo que Paulo considerava como lixo em vista de Cristo. Eles agiam na Comunidade apropriando-se da designação de missionários sem assimilarem o verdadeiro sentido de serem discípulos de Cristo. E faziam sucesso entre os filipenses, deixando-os inseguros a respeito da identidade cristã, criando divisões dentro da Comunidade.
            A primeira insinuação de um problema emerge em Fl 1,27. Aqui Paulo começa a enviar recomendações práticas relacionadas à vida da Comunidade de Filipos. A ênfase em “ser firmes num só espírito” e “lutar juntos, com uma só alma” por causa do Evangelho, sugere que a unidade da comunidade precisava de fortalecimento. “Haja entre vós o mesmo sentir e pensar de Cristo Jesus” (Fl 2,5). Entendido de outra maneira, esse versículo pode ser lido assim: “tenham em vocês a mesma atitude de Cristo Jesus”. A expressão “en Christo”, como está no texto grego, é o fundamento para ter a atitude de humildade que Paulo mostrou ser necessária. É alicerçado na atitude (vida) de humildade de Cristo, que os cristãos podem também ter a mesma atitude um para com os outros. Essa compreensão de Fl 2,5 se ajusta bem com o contexto no qual Paulo elabora a natureza da conduta cristã.

CONCLUSÃO
            O movimento abaixamento-exaltação é um elemento estrutural básico da Epístola inteira. Paulo se lançou claramente no papel de servo desde a saudação inicial (Fl 1,1) e da alusão às circunstâncias em que estava vivendo (Fl 1,12-16). Ele também testemunha que desfrutou privilégios, os quais, alegremente e livremente, foram colocados à parte e considerados como lixo por causa de Cristo (Fl 3,7-9). Ele diz claramente que Deus transformará seu corpo pobre em corpo glorioso, porque Deus tem o poder de sujeitar asi todas as coisas (Fl 3,21), por isso, Paulo acha que morrer é lucro (Fl 1,21).Ele deliberadamente usa a si mesmo e as circunstâncias em que vive para ilustrar como é o exercício cristão do papel de servo. Repetidamente Paulo utiliza o termo grego fronein (fixar a mente em, ter uma atitude de), para se referir à vida de humildade e abnegação, à qual já havia convidado os filipenses (Fl 1,7). Ele também usa esse termo para falar sobre sua própria atitude de compromisso abnegado que os convida a compartilhar (Fl 3,15). Finalmente, serve-se da mesma palavra para destacar os interesses egoístas para com valores terrenos (Fl 3,19) e para recomendar como os filipenses devem se preocupar com os outros (Fl 4,10). Paulo mostra que o cumprimento das “obrigações” de um cidadão do Reino de Deus, só é possível no esvaziamento de si mesmo, e em assumir o papel de servo. Os cristãos devem estar dispostos a terem o sangue derramado (libado) no serviço dos outros (Fl 2,17), terem a mente e o estilo de vida fixa em valores que são diferentes daqueles apresentados pelo “mundo” (Fl 3,18-19).

NOTAS
[1] A Via Egnatia partia de Bizâncio e, atravessando a Trácia e a Macedônia, chegava no Adriático, terminando na Via Apia que ligava a Roma. Entre as cidades atravessadas pela Via Egnatia estavam: Filipos, Anfípolis, Apolônia e Tessalônica, que foram visitadas por Paulo (cf. At 16,12; 17,1).
[2] O termo grego diáspora geralmente é traduzido por dispersão e significa as regiões, fora de Israel, por onde os judeus estão dispersos. Literalmente o termo significa “semeadura” (do grego sporá, semente). Dessa forma, os judeus destacam que a semente de Abraão (descendência) que carregam consigo e a semente de Deus (palavra) está semeando a fé no Deus vivo e verdadeiro por entre as nações através da proclamação da Torah nas sinagogas.
[3] Consideraremos o texto de Filipenses tal como se encontra atualmente na Escritura, sem levar em conta as hipóteses sobre o processo de sua redação.


BIBLIOGRAFIA
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EICHER, Peter (dir). Dicionário de conceitos fundamentais de teologia, São Paulo: Paulus, 1993.
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McKENZIE, John L. Dicionário bíblico, São Paulo: Paulus, 1983.
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VORGRIMLER, Herbert & RAHNER, Karl. Diccionario teológico, Barcelona: Herder, 1966.
ZIJLSTRA, Onno (ed). Letting go: rethinking kenosis, Bern and New York: Peter Lang, 2002.



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