sexta-feira, 18 de março de 2011

Até quando Senhor?


















INTRODUÇÃO
            Em poucas horas, um temporal na madrugada de 12, Janeiro, 2011 matou pelo menos 700 pessoas em três municípios da região serrana do Rio de Janeiro, os lugares mais atingidos foram, Teresópolis, Nova Friburgo e Petrópolis. Na maior catástrofe natural desde 1967 no Brasil, deslizamentos de toneladas de terra, quedas de pedras gigantescas e enxurradas de lama tomaram bairros inteiros. Ao ver as reportagens, os relatos de sobreviventes, daqueles que perderam mãe, cônjuges, filhos e pior, pessoas que perderam quase toda sua família. Comecei me perguntar, quantas pessoas evangélicas estavam nessa estatística? Quantos “crentes” perderam tudo o que tinham? Imediatamente me veio em mente outras catástrofes naturais como o terremoto que destruiu Porto Príncipe em 2010. Vidas dizimadas pela força implacável da natureza que segue seu curso fixo e imutável. Más, como desgraça pouca é bobagem, me lembrei de ataques terrorista como o das Torres Gêmeas nos Estados Unidos da América em 11 de Setembro de 2001. Sem mencionar o descaso de governantes que deixam seus países morrendo de fome, sem acesso a saúde e educação, más eles e sua prole, comem nos melhores restaurantes, têm os melhores médicos e estudam nas melhores faculdades que o dinheiro pode pagar. (é melhor eu mudar de assunto, pois estou ficando com o estômago embrulhado).
            Foi vendo tudo isso que entendi o profeta Habacuque melhor que antes. Fiquei em crise, profundamente chocado, usando o seu “Até quando Senhor?”. Fiquei abalado na minha teologia que enfatiza muito a direção de Deus na história. Vi um povo sofrendo e um Deus apático, dando de ombros para o choro, a dor e angustia dos que ficaram. Um Deus que não intervinha para libertar seu povo. Fiquei bem melancólico, mas também um pouco mais humano. Mais compreendedor de que a vida não é tão simples como muitas vezes formulamos em nossos esquemas, em que eu falo “Eu rejeito” ou então “Eu não aceito” e está tudo resolvido. Senti-me emocionalmente, como o profeta. Mas fui confortado, como o profeta ao refletir sobre a história, em pensar sobre o passado.

            Habacuque estabelece um novo tipo de profecia. A palavra do Senhor não veio a ele, não encontramos a fórmula clássica WAYOMMER IAHWEH, “E disse Deus”. Foi ele a ir ter com o Senhor. Inclusive, sua profecia é chamada de HAMASSA, que traduzimos por “Oráculo”. Mas, literalmente, o sentido é “Peso”. Sua mensagem era um peso sobre seus ombros. Ele “Viu”, diz nossa versão, no hebraico é HAZAH, termo largamente empregado na literatura apocalíptica, e não DAVAR, “Palavra”, como os profetas costumam empregar. Embora alguns comentaristas julguem ser a mesma coisa, é oportuno lembrar que Daniel e Ezequiel usam mais HAZAH e os demais profetas, DAVAR. Habacuque já está na fase de ser uma transição do profetismo para o apocalipticismo[1]. Este entendimento é necessário para se saber que o critério hermenêutico para entender seu livro pode ser diferente do empregado para um oráculo.
            A linguagem poética pode ser mais forte, aqui, e precisa se cuidar disto na interpretação.
            1- A figura de Habacuque:
            Habacuque significa “abraço”. Jerônimo entendeu que o nome lhe fora dado por causa de sua luta contra Deus. Mera especulação, mas que mostra como seu questionamento da omissão de Deus marcou os intérpretes bíblicos. Tem se argumentado muito que Habacuque era dos profetas cúlticos, ou seja, ligado ao culto do templo. O capítulo três, por exemplo, é um Salmo. No acréscimo apócrifo ao livro de Daniel, intitulado “Bel e o dragão”, ele é mostrado como alguém que, conduzido pelo Espírito de Deus pelos cabelos vai até a Caldéia levar uma sopa para Daniel, que está na cova dos leões. A LXX o dá como sendo da tribo de Levi. Ele seria, então, um levita, segundo a LXX. E, no caso do texto apócrifo acrescentado ao livro de Daniel, um servo dos profetas. Mas tentar fazer de Habacuque um levita do templo é atitude precipitada. A base é pouca. Afinal, outra obra apócrifa o dá como sendo da tribo de Simeão, natural da vila de Bet-Zujar, um lugarejo tão pequeno que merecia mais ser chamado de granja do que de vila[2]. Como se vê, as informações sobre ele não são apenas escassas. São contraditórias, também.
            O que interessa em habacuque, além, obviamente de seu conteúdo, é seu estilo, diferente do dos demais profetas. Ele ousa questionar a Deus, logo no início, com uma pergunta dura, em (1:2) “Até quando Senhor, clamarei eu, e tu não escutarás? Ou gritarei a ti: violência! E não salvarás?”. Não bastasse isso, ele se coloca sobre uma torre de vigia para ver o que Javé lhe responderá, como lemos em (2:1) “Sobre a minha torre de vigia me colocarei e sobre a fortaleza me apresentarei e vigiarei para ver o que me dirá, e o que eu responderei no tocante a minha queixa”. Esta tradução da versão revisada não faz sentido. Como ele responderá sua queixa? Outra pessoa é que tem que responder à sua queixa. A NVI traduziu desta maneira: “Ficarei no meu posto de sentinela e tomarei posição sobre a muralha; aguardarei para ver o que o Senhor me dirá e que resposta terei à minha queixa”.
            Esta atitude foi tão surpreendente que os copistas mudaram de “o que ele me responderá” para “o que eu lhe responderei”. Não podiam aceitar a postura do profeta. Estas atitudes fizeram-no merecer de Kyle Yates o título de “Livre pensador entre os profetas” [3]. Feinberg, no seu livro sobre os profetas menores, dá ao capítulo sobre Habacuque o título de “Problemas de fé” [4]. Viu ele um profeta em crise teológica.
            Habacuque merece nossa atenção. Pessoalmente, vejo-me muito nele. Tenho dificuldades em alguns momentos, surpreendo-me porque certos eventos me desconcertam, mas aprendi como ele, que vale a pena permanecer esperando uma resposta de Deus. Ela pode demorar e vir de maneira como não esperamos, mas sempre vem.
            2- O livro de Habacuque:
            É um livro curto, com um corte no estilo. O capítulo três é tão diferente que se chega, muitas vezes, a cogitá-lo como obra de outro autor. Isso sofre corroboração com a descoberta de um manuscrito de sua obra, na caverna de Qumran, o chamado documento 1QP HB. Como sabemos, a comunidade tida como essênia, em Qumran, manipulava as escrituras, reproduzindo-a como desejava.
            Creio que há uma questão que devemos levar em conta, aqui. Já tínhamos um cânon antes de Qumran. E já tínhamos um cânon antes da hipótese fragmentária, da alta crítica, da escola de Welhausen e outros. Será que só agora, séculos depois, críticos distantes da obra bíblica, no tempo e no espaço, conseguiram entender o que ninguém entendeu antes? Demos a Habacuque o crédito de ter escrito toda a sua obra.
            O livro deixa marcas no Novo Testamento, como veremos. É a doutrina mais profunda do protestantismo, a doutrina da justificação pela fé, não é inédita na pena de Paulo. É em Habacuque que ele vem se abeberar. Nossas raízes teológicas da justificação estão, portanto, neste obscuro profeta. Motivo mais do que suficiente para estudarmos a sua obra.
            3- A apatia de Deus:
            O livro abre com o profeta se queixando da apatia de Deus. Seu “até quando?”, logo no início, é quase blasfêmia. Ele declara que Deus é apático e não faz nada. Quando nos lembramos de um dos motivos do desgosto de Deus, por boca de Sofonias, podemos entender a dimensão que o ato de Habacuque tomou. “e há de ser que, naquele tempo, esquadrinharei a Jerusalém com lanternas, e castigarei os homens que se embrutecem com as fezes do vinho, que dizem em seu coração: O Senhor não faz o bem nem o mal” (Sf-1:12). Esta declaração dos contemporâneos de Sofonias irritou profundamente a Deus. Pois bem, é isto que Habacuque está dizendo, numa explosão emocional.
            Esta apatia de Deus ocasiona o crescimento da maldade. Era por isso que a lei se afrouxava, a justiça nunca se manifestava. O ímpio cercava o justo, pervertia a justiça e Deus se calava. Não é esta a sensação que muitos de nós temos, em certos momentos? Por que Deus não interveio no Rio de Janeiro, no ataque as torres gêmeas, em Triblinka, em Aushwitz, no massacre dos armênios pelos turcos, ou de tantas outras ocasiões? Por que Deus fica quieto no caso dos sem terra, do massacre do Carandiru, do massacre de Vigário Geral, da fome e das guerras tribais na África?
            Na realidade, o ponto central é, mais uma vez, a questão que angustia as pessoas sensíveis e aquelas que pensam: “o problema do mal”. Habacuque é parceiro de Jó. Ambos se afligem com a ação do mal no mundo. Jó aborda o sofrimento em nível individual e, para piorar, o seu sofrimento pessoal. Habacuque aborda o sofrimento em nível coletivo. E, especificamente o do seu povo.
            Qual é a resposta? Em ambos os casos, a resposta é a mesma: “nenhuma”. Deus, questionado pelos homens por causa do sofrimento, apenas apregoa a sua soberania sobre as nações e a história. Em ambos os casos, se vê que ele não é apático. Não se iludam os homens. Enquanto está em silêncio, está engendrando algo. Por isso trataremos agora o silêncio de Deus.
            4- O silêncio de Deus:
            Habacuque se queixa do silêncio de Deus. Ele está quieto, nada fala sobre os desmandos humanos. Este é o grande problema. Citando Feinberg:


“O silêncio de Deus nos negócios humanos, tanto ontem como hoje, tem sido difícil de aceitar. Mas, isso não quer dizer que não haja uma resposta e que a soberania divina é incapaz de lidar com a situação. Tudo está sob o seu olhar e todas as coisas estão debaixo do controle de suas poderosas mãos” [5]
            Sabemos disso, como cristãos. O problema é quando o silêncio divino nos atinge. Um chefe de família está desempregado, ora a Deus pedindo emprego e não consegue. Deus está silencioso. Uma jovem mãe está com câncer, sabe que vai deixar os filhos neste mundo, ora a Deus pedindo a cura e ela não vem. Por que Deus não responde, quando chamamos?
            No judaísmo rabínico, posterior a Habacuque, desenvolveu-se o conceito do silêncio de Deus. Os rabinos faziam a exegese de Gênesis 1:3 e perguntavam: ‘o que havia antes de Deus falar? E eles mesmos respondiam: “o silêncio de Deus”. E desenvolviam a idéia de que Deus se mantivera em silêncio, antes de um feito estrondoso. O conceito do silêncio de Deus se associou, portanto, a um prelúdio a uma ação grandiosa do Senhor. Podemos tomar este conceito emprestado e falar dos 400 anos de silêncio de Deus, sem profeta, no período inter testamentário, até que viesse o maior de todos os homens, Jesus Cristo.
            Deus estava em silêncio, mas isso não significa sua apatia nem que abandonara seu povo. Estava engendrando algo grandioso. O quê? Exatamente, podemos perguntar? E, como os rabinos dar a resposta à nossa pergunta: O juízo sobre Judá. Habacuque via a maldade, a corrupção, o afrouxamento da justiça. Deus puniria o povo. Iria enviar os caldeus. Mas esta resposta angustia mais o profeta. Os caldeus são piores? Como usar a maldade máxima para punir a maldade média? Quem puniria a maldade máxima?
            Muitas vezes a resposta divina às nossas perguntas não nos aquieta. Mas piora a situação. Ele é desconcertante. E pegou habacuque de jeito; este volta a expressar sua inquietação. Nosso profeta nos ajuda bastante: é possível abrir o coração diante de Deus, confessando os temores, as dúvidas e as perplexidades.    

           


[1] Ver, sobre isso, o artigo “Habacuque e o problema do mal”, de Luiz Alberto Teixeira Sayão, in “Vox Scripturae”, Vol. III, no. I Março de 1993.
[2] Conforme a obra apócrifa “vida dos profetas”.
[3] Yates, predicando de los libros proféticos, El paso, Casa Bautista de Publicaciones, 1954, p. 208.
[4] Feinberg, The Minor Prophets, Chicago: Moody Press, p. 205.
[5] FEINBERG, op. Cit. PP. 206-207.


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