EXEGESE DE ATOS 1,1-3: A CONTINUIDADE DA OBRA E ENSINO DE JESUS
Por
Marcos Andrade[1]
Introdução
Esse trabalho tem como escopo uma análise exegética do prólogo do livro bíblico dos Atos dos Apóstolos. Nossa análise se resume na perícope delimitada em 1,1-3. Analisamos o contexto literário, a estrutura interna e os aspectos que ligam este livro ao Evangelho sinótico de Lucas. Após algumas considerações sobre o conteúdo deste texto, que basicamente trata do caráter de continuidade da obra lucana, sugerimos algumas conclusões hermenêuticas.
1 – Delimitação da Perícope, Introdução ao relato dos Atos dos Apóstolos
“1Eu consagrei meu primeiro livro, ó Teófilo, a tudo o que Jesus fez e ensinou, desde o começo 2até o dia em que , após ter dado, no Espírito Santo, as suas instruções aos apóstolos que escolhera, foi arrebatado. 3É a eles que Jesus se apresentara vivo após a sua Paixão; tiveram mais de uma prova disto, enquanto, durante quarenta dias, ele lhes aparecera e mantivera conversação com eles sobre o Reinado de Deus.” (TEB)[2]
Esta perícope introduz o livro comumente chamado Atos dos Apóstolos. Este que não é outro livro, senão a continuação do relato lucano iniciado pelo evangelho sinótico de Lucas, segundo Benito Marconcini “A conclusão quase unânime de recentes estudos é concernente à unidade do evangelho (de Lucas) e dos Atos com base na língua, no estilo e na teologia.” (MARCONCINI: 2001, p. 147). Pablo Richard também diz que “O Evangelho de Lucas e o livro dos Atos dos Apóstolos têm um mesmo autor e constituem uma obra só. É possível que, em sua primeira composição, formassem um só livro.” (RICHARD: 1999, p.4).
Segundo Daniel Marguerat os dois volumes da obra lucana foram dissociados quando da formação do cânon do segundo testamento, ainda antes do ano 200 d.C. (MARGUERAT: 2OO3, p. 13).
Esta perícope trata-se de um acréscimo posterior quando desta dissociação. Nesse caso o prólogo encontrado em Lc 1,1-4 refere-se a obra toda de Lucas-Atos. Por isso a análise carece de uma comparação entre os dois textos. Pablo Richard escreve que originalmente o Evangelho de Lucas termina em 24,49 e o relato dos Atos dos Apóstolos se iniciaria em 1,6.
Surgem algumas perguntas: quando e por que esse acréscimo foi colocado?
2. Comparação dos prólogos do Evangelho de Lucas e de Atos dos Apóstolos:
Lc 1,1-4 | At 1,1-3 |
1Visto que muitos empreenderam compor uma narração dos acontecimentos realizados entre nós, 2segundo o que nos transmitiram aqueles que foram desde o começo testemunhas oculares e se tornaram servidores da palavra, 3pareceu me bom, também a mim, depois de me ter cuidadosamente informado de tudo a partir das origens, escrever para ti uma narração ordenada, excelentíssimo Teófilo, 4a fim de que possas verificar a solidez dos ensinamentos que recebeste. | 1Eu consagrei meu primeiro livro, ó Teófilo, a tudo o que Jesus fez e ensinou, desde o começo 2até o dia em que , após ter dado, no Espírito Santo, as suas instruções aos apóstolos que escolhera, foi arrebatado. 3É a eles que Jesus se apresentara vivo após a sua Paixão; tiveram mais de uma prova disto, enquanto, durante quarenta dias, ele lhes aparecera e mantivera conversação com eles sobre o Reinado de Deus. |
No prólogo de Lucas não há especificação sobre os ensinos de Jesus, mas o conteúdo do relato é apresentado como uma narração dos acontecimentos que foram realizados entre os que viveram tais situações e também por testemunhas oculares (Lc 1,1-2). Portanto, sendo este prólogo de toda a obra “Lucas-Atos” (CADBURY: 1927, citado por MARGUERAT: 2003, p.53)[3] , os acontecimentos que aqui se referem tanto se aplicam ao do primeiro relato em At 1,1: “tudo o que Jesus começou a fazer e ensinar” (NVI), como ao segundo relato: o que a comunidade de Lucas vivenciou após a ressurreição de Jesus.
No prólogo do primeiro relato o autor explica como sua narrativa foi documentada através de “testemunhas oculares e servidores da palavra”(Lc 1,1-2), são essas as fontes de Lucas para toda a sua obra. Já o segundo prólogo é uma mera lembrança do conteúdo do anterior, a saber: as obras e ensinos de Jesus. Se considerarmos tratar-se da mesma obra, essas são as fontes também dos Atos dos Apóstolos.
Ambas as introduções são dedicadas a Teófilo (Lc 1,3 e At 1,1), cujo significado é “amigo de Deus”. Segundo Pablo Richard:
Esse Teófilo pode ter sido uma pessoa concreta (era normal dedicar uma obra a personagens ilustres) ou um nome simbólico para designar seus interlocutores. Teófilo significa “amigo de Deus” e poderia referir-se aos futuros catequistas e evangelizadores, aos quais Lucas escreve este tratado de ensinamento superior. (RICHARD: 1999, p.)
O primeiro prólogo tem como objetivo o que Teófilo ou os “teófilos”, que poderíamos entender como a comunidade de Lucas, deveriam saber. A intenção do autor em relação ao dedicado de sua obra é que ele pudesse ter certeza daquilo que lhe foi ensinado. Portanto sua intenção é teológica, é produzir fé no seu leitor. “ Em suma, parece uma Igreja que necessita de conversão. A palavra converter-se – conversão (metanóia) está presente catorze vezes no evangelho e onze nos Atos dos Apóstolos” (MARCONCINI: 2001, p.152). Daniel Marguerat diz que “Lucas é historiador e teólogo. Mais precisamente, ele é historiador porque é teólogo. A história é para ele o lugar onde o humano se encontra com o divino ” (MARGUERAT: 2003, p.45). Ou seja ele produz sua teologia a partir da narrativa, dos acontecimentos e desta forma pretende articular a fé.
Por outro lado o prólogo do segundo relato, dando caráter de continuidade a obra lucana, relembra os últimos dias de Jesus com os discípulos após a ressurreição (At 1,3). Ele aparece a eles e come com eles (Lc 24,36-49). Quem estava presente? São os onze discípulos mais a mulheres que viram Jesus (Lc 24,8-10).
3. Contexto Literário
Conforme podemos ver, no prólogo de Atos dos Apóstolos, temos o caráter de continuidade da obra e ensino de Jesus através da atuação do Espírito Santo nos apóstolos e demais discípulos de Jesus. Sendo que em Lc 24,49 Jesus disse que eles deveriam permanecer na cidade até que ele enviasse “o que meu Pai prometeu”, isto é o Espírito Santo agora amplamente citado no relato dos Atos dos Apóstolos. Note que as últimas instruções que Jesus havia dado conforme narrado em Lc 24, agora aqui em At 1,2, que elas foram dadas “no Espírito Santo”.
Podemos perceber que os v.4-11 de At 1, são como um fio que costura a narrativa de Lc 24,49 a At, 1,12. Observe os textos de At 1 que fazem a alusão a Lc 24, ou seja a alusão a aparição de Jesus após a ressurreição dando-lhes instruções e comendo com eles.
Lc 24,36 “Jesus se faz presente no meio deles” | At 1,3 “É a eles que Jesus se apresentara vivo após a sua Paixão.” |
Lc 24,41-12 “’Tendes aqui algo de comer?’” Eles lhe ofereceram um pedaço de peixe grelhado; ele o tomou e comeu a vista deles. | At 1,4 “Durante uma refeição com eles” |
Lc 24, 49 “Da minha parte eu vou enviar-vos o que meu Pai prometeu. Quanto a vós permancei na cidade até que sejais revestidos, do alto, do poder. | At 1,8 “Mas recebereis uma força do Espírito Santo que vira sobre vós” |
Estes textos nos mostram a continuidade do relato lucano do Evangelho para o dos Atos dos Apóstolos. O que Jesus começou a fazer e ensinar continuou na comunidade de Lucas, com autorização do próprio Jesus através do poder do Espírito Santo.
4 – Estrutura Interna
É importante notar que os v.1-2 são distintos do v.3 em sua forma literária. Enquanto os dois primeiros introduzem o relato dos Atos dos Apóstolos, através de lembrança e resumo do conteúdo da primeira obra. O v.3 tem a intenção de fazer a ligação das duas obras relembrando o fato que antecede o que se seguirá em Atos dos Apóstolos. Podemos então estruturar a perícope da seguinte forma:
1 – Introdução ao relato de Atos dos Apóstolos
- Lembrança do primeiro relato (v.1)
- As obras e ensinos de Jesus antes de ser elevado (v.2)
2 – Os apóstolos como testemunhas do Jesus ressurreto – Elo dos relatos Lc-At (v.3)
Há um paralelo de Atos 1,3 com o Evangelho de Lucas. Fala-se aqui de um tempo de quarenta dias em que os apóstolos foram provados acerca da ressurreição de Jesus. O número “quarenta” é representativo. É sempre um tempo de prova ou teste que antecede o tempo do reinado de Deus ou de atuação do Espírito. Veja que em Lc 4,2 Jesus foi levado ao deserto pelo Espírito para ser tentado pelo diabo por quarenta dias. No v.14, Jesus pelo poder do Espírito inicia seu ministério. Em At 2, encerra-se o período de quarenta dias e o Espírito Santo com o mesmo poder age nos apóstolos para iniciar um novo tempo de reinado de Deus. Sobre a simbolização do número quarenta podemos ainda lembrar da narrativa vetero testamentária que trata do tempo em que os israelitas foram provados no deserto até entrar na terra prometida por Javé (Dt 8,2).
Podemos então verificar que o v.3 de At 1 é o fio narrativo para a continuidade do relato lucano entre a biografia de Jesus e a historiografia dos Atos dos Apóstolos. Este texto é o ponto de encontro entre a narrativa de Jesus com os discípulos em Lc 24 e o que a narrativa que o sucede a partir do v.4 de At 1. A chave está na expressão original grega Basileias Tou Qeou, Basiléia Theo, “Reino de Deus”. Observe que At 1,6 os que discípulos reunidos perguntam sobre a restauração do “Basiléia” (Reino) para Israel, assim como disseram em Lc 24,21 sobre o “libertador de Israel”. Como conciliar estes dois textos? Jesus está falando do Reino de Deus e os seus seguidores indagando sobre um reino terreno. A resposta é dada a partir da missão que Jesus lhes dá de serem testemunhas por todo o mundo, não de um “reino davídico oposto ao domínio romano” (RICHARD: 2001, p.23), mas sim do Reino de Deus identificado “com a vida do povo, em especial com a vida do povo pobre e oprimido... um projeto teocrático e político” (RICHARD:2001, p.23).
4. Análise de conteúdo
Algumas observações podem ser destacadas a partir de nossa análise exegética da perícope proposta:
1. At 1,1-3 não é exatamente a introdução de um novo livro, mas sim um elo entre os dois relatos. Talvez não fizesse parte do manuscrito original, tendo sido acrescendo posteriormente quando da dissociação dos dois relatos.
2. O caráter de continuidade do primeiro relato nos remete ao caráter de continuidade da obra e ensino de Jesus iniciada por Ele mesmo no poder do Espírito Santo e agora continuada por meio dos seus apóstolos e todos da comunidade de Lucas pelo poder do mesmo Espírito. A NVI traduziu o v.1 pela expressão “tudo o que Jesus começou a fazer e ensinar” o que enfatiza essa continuidade.
3. O tempo que antecede o ministério pelo poder do Espírito Santo aqui nos Atos dos Apóstolos, faz um paralelo com a tentação de Jesus de “quarenta” dias, ambos falam de um tempo de prova que antecede o Reinado de Deus.
4. A implementação do Reino de Deus é o tema e a missão proposta por Jesus para aqueles que continuarão a sua obra.
5 – Conclusões hermenêuticas
Podemos aprender com esta perícope que os “amigos de Deus”, Teófilo, tem como tarefa dar continuidade ao que Jesus começou a fazer e ensinar, isto é, implementar o Reino de Deus, que conforme podemos ver pelo Evangelho de Lucas, trata-se da tarefa com a qual Jesus se ocupou e instou os seus seguidores a se ocupar (a expressão aparece pelo menos 32 vezes).
Entendo ainda, que continuar a fazer o que Jesus começou a fazer e a ensinar não é repetir, mas ter Jesus como ponto de partida. O livro dos Atos dos Apóstolos nos mostrará que a igreja não repetiu literalmente palavras e obras de Jesus, mas deu continuidade contextualizando o Evangelho às situações e culturas de então.
Fica então reflexão a ser considerada: o que significa dar continuidade a obra e ensino de Jesus? Jung Mo Sung, teólogo católico, disse certa vez em um debate, que imitar Jesus não é fazer o que ele disse e fez, mas é fazer o que ele faria.
BIBLIOGRAFIA
CASALEGNO, Alberto. Ler os Atos dos Apóstolos: estudo da teologia lucana da missão. São Paulo, Loyola, 2005.
FABRIS, Rinaldo. Os Atos dos Apóstolos. São Paulo, Loyola, 1991.
GABEL, Jonh B. e CHARLES, B. Wheeler. A Bíblia como Literatura. São Paulo, Loyola, 1993.
MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinóticos: formação, redação, teologia. São Paulo, Paulinas, 2001.
MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo: os Atos dos Apóstolos. São Paulo, Loyola, Paulus, 2003.
RICHARD, Pablo. O Movimento de Jesus depois da ressurreição: uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. São Paulo, Paulinas, 2001.
DICIONÁRIOS
Brown, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 1978.
Gingrich, F. Wilbur e Frederick W. Danker. Léxico do Novo Testamento Grego / Português. São Paulo, Vida Nova, 1983.
BIBLIOGRAFIA (livros da internet)
CASALEGNO, Alberto. Ler os Atos dos Apóstolos: estudo da teologia lucana da missão. São Paulo, Loyola, 2005.
FABRIS, Rinaldo. Os Atos dos Apóstolos. São Paulo, Loyola, 1991.
GABEL, Jonh B. e CHARLES, B. Wheeler. A Bíblia como Literatura. São Paulo, Loyola, 1993.
Livros próprios:
MARCONCINI, Benito. Os Evangelhos Sinóticos: formação, redação, teologia. São Paulo, Paulinas, 2001.
RICHARD, Pablo. O Movimento de Jesus depois da ressurreição: uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. São Paulo, Paulinas, 2001.
MARGUERAT, Daniel. A primeira história do cristianismo: os Atos dos Apóstolos. São Paulo, Loyola, Paulus, 2003.
[1] Mario Marcos Andrade da Silva, Bacharel em Teologia pelo (ICEC), Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos. M. 10.1.509. Com convalidação pela Faculdade Unida. Além de especialista em escatologia, angelologia e aconselhamento pastoral pelo IDE Missões.
[2] Tradução Ecumênica da Bíblia, Loyola, São Paulo, 1994.
[3] Segundo Daniel Marguerat, Henry Joel Cadbury foi o primeiro a dar, em 1927, o nome de “Lucas Atos”.
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