1. O discurso da cristandade a respeito de sexo antes do casamento
Falar a respeito de “sexo antes do casamento” no Ocidente, tornou-se nas últimas décadas um tema um tanto irrelevante em se tratando de ambientes fora das igrejas cristãs. Existe muito pouquíssima gente preocupada com virgindade fora desses contextos.
Na prática demonstra que o assunto, até mesmo dentro da igreja, também já vem se tornando irrelevante.
Pesquisas americanas mostraram como tem sido o comportamento do evangélico na área sexual. De modo algum diferente do não evangélico. Ronaldo Sider menciona um estudo publicado por pesquisadores das universidades de Colúmbia e Yale baseado em programa patrocinado pela Convenção Batista do Sul denominado “True Love Waits” (O Verdadeiro Amor Espera).
“Desde 1993, aproximadamente 2,4 milhões de jovens assinaram um compromisso de esperar até o casamento para terem relações sexuais. (...) Durante sete anos eles estudaram 12 mil adolescentes que assinaram o compromisso. (...) 88% deles afirmaram ter relacionamento sexual antes do casamento; apenas 12% cumpriram sua promessa. Os pesquisadores constataram também que as taxas de doenças sexualmente transmissíveis ‘foram quase idênticas entre os adolescentes que fizeram o compromisso e os que não fizeram’.” (SIDER: 2005, p.23)
Exceto no discurso, não parecer haver diferença. Exceto no discurso das igrejas católicas e/ou fundamentalistas, o tema parece ser irrelevante aos demais da sociedade.
Porém nos discursos, pentecostais e católicos ainda recheiam suas mensagens e doutrinas com a preocupação sobre pureza sexual, como sempre foi observável desde sempre na história do cristianismo. Regina Navarro Lins menciona que na história do cristianismo:
“Notáveis pensadores cristãos como Tertuliano, Jerônimo, Agostinho, juntamente com São Paulo, deixaram as mais duradouras impressões em todas as idéias cristãs subsequentes sobre o sexo. Eles eram homens que haviam levado ativa vida sexual antes de se converterem ao celibato, e que reagiram depois com total repulsa ao sexo.” (LINS: 2005, p.64)
LINS menciona ainda que sobre o sexo “Arnóbio o chamou de sujo e degradante. Metódio, de indecoroso; Jerônimo, de imundo; Tertuliano, de vergonhoso” (LINS: 2005, p.64), demonstrando assim que a igreja desenvolveu “horror aos prazeres do corpo”, à sexualidade.
Bruna Suruagy do Amaral Dantas – mestre e doutoranda em Psicologia Política pela PUC-SP, em sua tese “A Dupla linguagem do desejo na Igreja Evangélica Bola de Neve” disserta sobre a discrepância entre o desejo latente despertado pela maneira de ser de se vestir dos jovens fiéis e o incentivo do cuidado com corpo em contra partida com o discurso ascético da Bola de Neve. Dantas ilustra como, apesar de uma proibição, paradoxalmente o desejo é incentivado:
Os fiéis que dela fazem parte possuem visual despojado, usam tatuagens e piercings, vestem roupas descontraídas que valorizam os contornos do corpo, aderema acessórios da moda, pertencem a diferentes “tribos” e apresentam os mais diversificados perfis estéticos. As meninas vestem calças justas, miniblusas e saias curtas, exibindo corpos bonitos e bronzeados. Alguns rapazes são musculosos e possuem corpos atléticos. Muitos usam roupas despojadas, bermudas folgadas, camisetas, bonés e chinelos. “Eles praticam esportes radicais e participam de torneios esportivos promovidos pela própria igreja. A maioria dos eventos de evangelização – luau efestivais musicais –, assim como os campeonatos esportivos organizados pela Igreja Bola de Neve, ocorrem na praia, o que contribui para reforçar a imagem e a identidade do empreendimento.” (DANTAS: 2010, p.56)
Observa-se na membresia dessa denominação, uma maioria de jovens que cuida muito bem do corpo e da estética, pois há forte incentivo para a prática de esportes e cuidados estéticos.
Portanto, até aqui, temos subsídios para demonstrar que o tema do sexo antes do casamento se apresenta muito mais como uma questão de discurso do que de prática entre as comunidades que propõe a espera para a prática dentro do casamento.
2. Algumas definições sobre casamento
No Brasil, do ponto de vista jurídico, considera-se casamento a união de duas pessoas: homem e mulher, pois em nosso Código Civil, conforme o Artigo 1514, só se menciona o casal heterossexual. Há o registro civil e às vezes religioso também (artigos 1514 e 1515 do Código Civil.
A união estável já é equiparada a entidade familiar no que tange aos direitos patrimoniais, entretanto ainda há a distinção na legislação da “União Estável” para “Casamento” no Código Civil (Artigo 1723). Só se considera casamento mesmo quem registrou no cartório. Devemos lembrar que a legislação brasileira se estrutura e nasce a partir do Direito Canônico da Igreja Católica.
O casamento civil só surge no Brasil em 1890, pois até então havia apenas o religioso (LUZ: 2009, p.13).
Lembremos que a preocupação do Direito, no que tange ao casamento é a proteção ao patrimônio.
Do ponto de vista do senso comum, as definições são as mais variadas possíveis conforme a formação do sujeito, comunidade em que vive, etc. Existem os que consideram “casadas” apenas as pessoas que fizerem seu registro civil, existem os que entendem que “morar junto” é estar casado e, talvez mais entre os artistas, aqueles que são casados mas os cônjuges moram cada um em sua própria casa. Entretanto, parece prevalecer no imaginário coletivo a idéia de que casamento só é válido mesmo, quando “no papel”, apesar do número de “uniões estáveis” ou “amaziados” ser notável em nosso país.
Com tanta forma de ver o casamento, é difícil definir o que é “certo” ou “errado” nessa área. Existem sociedades polígamas e monogâmicas, umas poucas que admitem a poliandria, o casamento gay, etc.
Do ponto de vista religioso, no Brasil, temos a posição da Igreja Católica que reconhece apenas o casamento genuíno somente hetero, civil e religioso celebrado nas suas paróquias. Há ainda a posição dos evangélicos que reconhecem, em sua maioria, o casamento genuíno sendo hetero e civil, nem sempre exigindo a celebração religiosa. Quanto as religiões afro-brasileiras há reconhecimento das uniões homo e hetero afetivas.
- Problematizando o significado de casamento
Para podermos entender a questão do sexo antes do casamento, entendo que faz-se necessário alguns questionamentos sobre o que é, de fato, casamento. Sugiro algumas perguntas:
Quem define se alguém está casado: Estado, Igreja, família, sociedade ou o casal?
Num primeiro momento temos a invenção do casamento religioso pela igreja católica e num segundo momento temos a invenção do casamento civil. Sendo instituições que definem o que é o casamento, o que o sexo antes ou depois, que é assunto da vida privada do casal, tem a ver com essas instituições?
O casamento seria simplesmente a união de duas (ou quem sabe mais de duas) pessoas ou seria um contrato de submissão de uma pessoa à outra? Sendo um contrato que submete às pessoas, não seria ele também uma forma de controle e consequentemente de opressão, já que não estão livres para se relacionar sexualmente com outras pessoas se assim o desejarem? Se o amor só pode ser expressado por meio da liberdade, como poderia o casamento, um contrato que obriga as partes a estarem presas uma à outra, pode expressar essa liberdade?
Sendo o casamento autenticado por uma instituição, porque o sexo que é natural e biológico tem de ser regulado pelo casamento que é invenção humana? Ou o casamento é uma invenção de Deus?
O que nos faria pensar que o casamento é uma invenção de Deus? Não seria apenas o sexo a invenção de Deus? E nesse caso não teria de ser desfrutado plenamente independente do casamento?
De onde vem o casamento? Regina Navarro Lins, baseada em estudos antropológicos e arqueológicos diz que durante muito tempo não havia a consciência de que o homem tinha participação na reprodução humana. Essa consciência veio com a domesticação de animais, quando percebe que o carneiro sozinho pode emprenhar mais de 50 ovelhas!. Esse poder do macho seduz o homem que passa a saber que tem participação na reprodução feminina (LINS: 2005, p.27). Para assegurar seu poder nasce a idéia de casal, desconhecida até então porque todos viviam juntos de maneira comunitária. A idéia de casal nasce então a partir do fascínio pelo poder. O homem agora reconhece que é “pai” e para garantir a herança do filho, é necessário garantir a fidelidade da mulher. Com os clãs precisando ser cada vez mais fortalecidos, o sexo agora passa a ser instrumento para mera procriação. A mulher que procria é valorizada. A que não procria não é valorizada. (LINS: 2005, p.31).
Justificar o amor como motivo para o casamento nem sempre foi o fator definitivo. Lins mostra como na verdade durante muito tempo o casamento não era o espaço para o amor, ao contrário os cônjuges não deveriam se amar, mas se respeitar. E o sexo era apenas para procriação (LINS: 2005, p.172).
4. Quem são os antagonistas do sexo antes do casamento?
Os atuais antagonistas mais ferrenhos do sexo antes do casamento atualmente são: a Igreja Católica, que diz ser o melhor método contra a AIDS e as DST’s, as igrejas evangélicas que fazem leituras literalistas da Bíblia e os islâmicos.
Para podermos elaborar uma tese a respeito desse tema, é necessário entender de onde surgem as proibições.
Em sua obra sobre a “História da Sexualidade” Michel Foulcault fala como a proibição do sexo sempre foi instrumento de domínio da Igreja Católica. Com o concílio de Latrão, foi instituída confissão onde as pessoas confessavam todos os detalhes de suas relações sexuais, deixando assim, de ter uma atitude natural com relação a essa questão. Ou seja, se falou muito a respeito de sexo. A sexualidade é um excelente instrumento de manobra uma vez que todos possuem o instinto e assim se justifica sempre a existência de uma tentação sempre latente. É um meio de manter as pessoas com medo do inferno e portanto pecadoras sujeitas ao inferno, cujo único escape é a confissão e penitência no guarda-chuva protetor da igreja. (FOULCAULT: 1999, p.19-50). Nesse sentido a sexualidade humana torna-se sempre numa relação neurótica, sempre considerada pecado, exceto para a procriação e isso como um “mal necessário” segundo S. Tomas de Aquino.
- Análise bíblica e teológica
As menções de Jesus ligadas a questões sexuais normalmente tem ênfase não sobre o pecado da pessoa. Humberto Maiztegui Gonçalves nos dá alguns exemplos em sua abordagem teológico-antropológica da sexualidade na Bíblia (GONÇALVEZ, in CALVANI, 2010, p.11-23):
- Mt. 21,31b: “as meretrizes” (como são taxadas) precedem os fariseus no Reino dos Céus;
- Jo 4, 16-18: a mulher samaritana tem alguém que não o seu marido atualmente e Jesus diz que ele já teve cinco, entretanto em nenhum momento vemos Jesus mandando ela parar com a vida que tinha;
- Jo 8,3: a mulher “pega” em adultério não é condenada, mas todos os seus acusadores são colocados em pé de igualdade com ela;
Paulo recomenda não casar mas para aqueles que não se agüentam recomenda casar (I Co.7,1-7), mas isso como conselho dada a situação difícil que estavam vivendo. Entretanto há um texto que Paulo reclama não poder levar uma mulher junto com ele durante suas viagens missionárias? Então o texto deixa dúvidas se estão falando de uma proibição de sexo antes do casameto.
Cantares é o livro pornográfico da Bíblia. Não existem evidências de que o casal de Cântico dos Cânticos seja casado, há estudiosos que afirmam solteirice dos casais e que estão no exercício pleno de sua sexualidade. (VERGARA in CALVANI: 2010, p.135-145). Mesmo na Bíblia evangélica “BÍBLIA ANOTADA” que divide o livro em noivado e casamento, os textos que falam de intimidade sexual estão na divisão do noivado. (RYRIE: 1994, p.842-844).
A frase “quem ama espera” pretende ser a razão principal evangélica para justificar a proibição do sexo antes do casamento. Baseado normalmente na história de Jacó que trabalhou para Labão por muitos anos. Entretanto no mesmo livro, somos informados que Isaque foi para a tenda assim que a moça chegou e foi direto para a tenda. Ou seja, o modelo de espera não é homogêneo na Bíblia. Aliás, não há nenhum modelo na Bíblia, pois se fala de sexo para procriação, de erotismo e prazer, de prostituição permitida (livro de Oséias), de adultérios perdoados (Davi), de divórcio onde é colocado na boca de Jesus que não pode se for por adultério e Paulo diz que ser o cônjuge for descrente aí é permitido.
Conclusão
Diante de tanta variedade de modelo social e bíblico com respeito a sexo e casamento e o uso de forma opressora pela sociedade patriarcal e pela religião, não há, em minha opinião, a menor possibilidade de entender sexo antes do casamento como algo eticamente inaceitável, mesmo que do ponto de vista de cristão. Aliás, do ponto de vista de Jesus, que é pela liberdade e não pela opressão, me parece que o modelo mais próximo seria o do exercício livre da sexualidade. O que pautará esse exercício, a meu ver, não são regras humanas e institucionais, mas sim o princípio de alteridade, aquele que busca sempre pelo outro. Aliás, o sexo não seria uma forma natural de alteridade já que o prazer pode ser concedido de um pelo outro?
Bibliografia
CALVANI, Carlos Eduardo (org.). Bíblia e sexualidade: Abordagem teológica, pastoral e bíblica. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.
DANTAS, B. S. do A. A dupla linguagem do desejo na Igreja Evangélica Bola de Neve. Revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(1): 53-80, 2010.
FOULCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad. De Maria Tereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
LINS, Regina Navarro. A cama na varanda: Arejando nossas idéias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Best Seller, 2005.
LUZ, Valdemar P. da. Manual de direito da família. Barueri: Manole, 2009.
PINTO, Antônio Luiz de Toledo, WINDT, Márcia Cristina Vaz dos Santos, CÉSPEDES, Lívia. Vade Mecum, obra coletiva. São Paulo: Saraiva, 2009.
RYRIE, Charles Caldwell. A Bíblia anotada. São Paulo: Mundo Cristão, 1994.
SIDER, Ronaldo. O escândalo do comportamento evangélico: por que os cristãos estão vivendo exatamente como o resto do mundo? Viçosa: Ultimato, 2005.