terça-feira, 1 de março de 2011

O PROFETA DAS VISÕES

O PROFETA DAS VISÕES
(Breve comentário sobre Ezequiel)


Por
Mario Marcos Andrade de Silva[1]


INTRODUÇÃO


Ezequiel: um homem, sem dúvida, descontente, de gênio tão variado, tão rico, tão complexo, que seu livro se nos apresenta denso e difícil de percorrer. Todavia este livro dá testemunho de um homem que viveu um dos momentos mais dramáticos da história de Israel e cuja experiência espiritual é uma das mais aptas a esclarecer o destino do povo de Deus. Não será, então, de particular atualidade?
            A personalidade de Ezequiel reflete uma força mística. A proximidade do seu contato com o Espírito suas visões e a freqüência com a qual a palavra do Senhor vinha até ele fornece um paralelo entre os profetas extáticos mais antigos e os profetas escritores clássico. Suas experiências espirituais também anteciparam a atividade do Espírito Santo no NT. A ele adequadamente pertence o título de “carismático”.
            A mensagem de Ezequiel foi endereçada ao resto dos pervertidos de Judá e aos exilados na Babilônia. A responsabilidade moral do indivíduo é um tema de primeira importância em sua mensagem. A responsabilidade coletiva não mais resguarda o indivíduo. Cada indivíduo deve aceitar uma responsabilidade pessoal pela desgraça da nação. Cada indivíduo é responsável pelo seu pecado individual (18-2-). Foi o peso do pecado acumulado de cada indivíduo que contribuiu para o rompimento do concerto de Deus com Israel, e cada qual leva uma porção da culpa pelo julgamento que resultou no exílio para a Babilônia.
 

O LIVRO DE EZEQUIEL
            Sua estrutura se apresenta simples e lógica. Depois do relato da vocação do profeta (1:1-3:21), vem os oráculos que anunciam o julgamento de Jerusalém (3:22-24:27) , o castigo das nações (25-32) e a restauração do povo aniquilado (33-37). O livro se completa nas vastas perspectivas de um horizonte distante: aos olhos do leitor, desenrola-se inicialmente a decisiva batalha do povo de Deus diante de terríveis inimigos (38-39); depois se desenha a silhueta da montanha sobre a qual Ezequiel vislumbra a capital futurista do povo de Deus renovado (40-48).
            Mas, depois de ultrapassado esse esquema, bastante lógico, o livro espanta por certa liberdade que aparenta desordem. Assim, no interior do cap. 34, os temas do pastor e do rebanho se desenvolvem em sentidos diversos (inspirados, é verdade em Jr-23;1-6), e o cap. 1 contem um acúmulo de detalhes estranhos, aparentemente supérfluos – as rodas, por exemplo – ou então acrescentados em detrimentos de coerência gramatical. Os discípulos de Ezequiel têm grande responsabilidade nessa desordem. Aparentemente indiferentes a toda lógica, fragmentaram seus oráculos: (3:22-27) (4:4-8) (24:15-27) e (33:21-22) poderiam ser os membros dissociados de um relato contínuo; ou então aproximaram indevidamente oráculos independentes, unindo-os por um vínculo fictício: assim é que o termo de encadeamento “espada” (cap. 21) serve de elo entre os parágrafos alheios uns aos outros: a espada do Senhor (21:6-12), espada bem afiada (21:13-22), do rei da Babilônia (21:23-32), erguida contra os amonitas (21:33-37); esses discípulos chegaram a repetir várias vezes os mesmos oráculos: “os justos caminhos do Senhor” encontram-se – idênticos, ou quase – em (18;1-32) e (33:10-20).
            O próprio Ezequiel não é totalmente estranho à atual fisionomia de seu livro; foi ele o primeiro a sobrecarregar as frases com detalhes, os capítulos com parágrafos, todos portadores de uma doutrina capital, mas sem compromisso com a harmonia primitiva: assim aconteceu-lhe completar os relatos das visões (1-3; 8-11) ou de certo gesto profético (4:4-17) etc. Aliás, era o que desejava seu gênio variado, instável, quase doentio, por assim dizer. Não o vemos prostrado (3:15), mudo (3:26), talvez paralisado (4:4-8)? Esse gênio não consegue defender-se da atração dos extremos: é fulgurante e meticuloso, pronto para o sublime e para o trivial; deixa-se seduzir pelo peso do barroco, deixa-se levar pela embriaguez do surrealismo (ver os poemas da águia: 17:1-10; do dragão: 32:1-8), e em seguida encerra sua imaginação impetuosa e sua frase redundante nas frias distinções de um casuísta (caps. 18 e 33), na monótona descrição de uma geografia de computador (caps. 47 e 48), na seca enumeração de dados arquitetônicos (caps. 40 e 42) ou nos parágrafos cansativos de rubricas minuciosas (44:46). È ainda ele que se deixa guiar pelos marcos preciso da história – as alusões históricas são numerosas no plano de fundo dos capítulos 16 e 19, ou nos diversos oráculos contra as nações – e que mostra familiaridade com riquezas inesgotáveis, perspectivas fugidias e indefinidas da evocação mística: o homem primordial e o jardim do Éden (cap.28), a árvore cósmica (cap. 31), as regiões infernais (cap. 32).
            O livro de Ezequiel faz parte da subdivisão chamada Profetas maiores do cânon hebraico e encontra-se logo após Isaías e Jeremias. A Bíblia em português adota a ordem da Septuaginta e coloca Ezequiel após Lamentações. Apesar do livro sempre ter feito parte do cânon hebraico, estudiosos judeus posteriores questionam seu valor pelas aparentes discrepâncias entre sua interpretação do ritual do templo e as prescrições da lei mosaica (Divergência no número e nos tipos de animais sacrificados na Festa da Lua Nova (Nm 28.11 e Ez 46.6). Os rabinos finalmente restringiram o uso público e particular de Ezequiel.

O PROFETA EZEQUIEL
            Ao longo deste livro, cuja estrutura e estilo já esboçam a silhueta de alguém, finalmente aparece um personagem, Ezequiel, o profeta. Ezequiel, cujo nome significa “Deus fortalece” é identificado como o filho de Buzi, o sacerdote (1:3). Embora essa identificação tenha sido questionada, parece não haver uma razão válida para se duvidar disso. Ele era, provavelmente, um membro da família sacerdotal dos Zadoqueus, que se tornaram importantes durante as reformas de Josias 621 a.C. Ezequiel passou seus vinte e cinco primeiros anos da sua vida em Jerusalém. Estava se preparando para o serviço sacerdotal do templo quando foi levado prisioneiro à Babilônia em 597 a.C. Ezequiel desenvolveu a sua atividade profética na Babilônia entre os anos 593 e 571 a.C. representando a passagem da profecia pré-exílica para o período pós-exílio. De fato, a sua atividade desenvolveu-se em plena fase que antecedeu a destruição de Jerusalém (em Janeiro de 587 a.C.) e durante o período de cativeiro na Babilônia.   
            Contemporâneo da queda de Jerusalém (587 a.C), às vezes da à impressão de ter começado sua pregação na capital palestina, antes de continuá-la e de levá-la a termo entre os deportados, às margens do rio kebar.  Assim se explicaria melhor, entre outras coisas, a minuciosa descrição de todos os gestos idolátricos realizados no Templo (cap.8). Mas o argumento parece pouco convincente, a maioria dos comentadores julga que toda a atividade profética de Ezequiel se desenrola em terra babilônica, junto a uma cidade: Tel-Abib; o profeta fora levado pra lá antes da destruição de Jerusalém, por ocasião das primeiras gazuas palestinas de Nabucodonosor (598 a.C). São registradas as datas de certos oráculos. A visão celestial do capítulo 1 não é confiável (tratarei deste assunto ao analisar alguns textos), mas as outras são dignas de atenção. A visão dos pecados de Jerusalém (8:1) é situada no sexto ano (do exílio do rei Joaquim, que é também o de Ezequiel), ou seja, exatamente 17 de Setembro (mês de elul no calendário judaico) de 592 a.C. o oráculo da panela (24:1) é datado do nono ano, ou seja, 15 de dezembro (mês de tevet no calendário judaico) de 589 a.C. dia em que Nabucodonosor começou o cerco de Jerusalém; outros são datados no décimo ano 588, no tempo em que o faraó do Egito se encontra em má situação (29:1); no décimo primeiro, em 587 (26:1), no décimo segundo, ou seja, no início de 585 (33:21), no vigésimo quinto, em 573 (40:1), e por fim no vigésimo sétimo em 571 (29:17).

A MENSAGEM DE EZEQUIEL
            É, pois, na Babilônia que se desenvolveu a atividade daquele que era até então um sacerdote e que conservou, até o fim da vida, sua mentalidade de sacerdote perito em culto, liturgia, rubricas e sacristias (caps. 40-48); é lá ainda que, de repente, ele se transtorna. Produzem-se dois acontecimentos: a irrupção da glória de Deus fez desse sacerdote um profeta, e a queda de Jerusalém transformam o pregador de condenação em pregador de salvação. Vamos analisar estes dois fatos:
            A irrupção da Glória: Eis, pois, que a partir de certo dia, a vida de Ezequiel é como que invadida pela glória do Senhor. Ela se mostra em várias ocasiões (1:28; 3:23; 8:4; 10:1; 43:2), deixando-o todas as vezes atônico, extasiado (3:15).
            Que vê ele? No meio de uma grande nuvem, precedido pelo sopro da tempestade, um fogo em forma de redemoinho; e depois, seres vivos. São quatro; eles voam, sustentam um firmamento sobre o qual aparece um trono. Acima, há como o aspecto de homem, com uma claridade ao redor dele... É o aspecto da glória do Senhor (1:4-28).
            No fundo, o profeta está em vias de reviver, mas com gênio diferente e noutro contexto, a visão de seu grande predecessor, Isaías. Ele acaba de receber a revelação esmagadora da transcendência do Senhor, da Glória daquele que é o rei de toda a terra (Is-6:3). Este último ponto está ausente da descrição inicial de Ezequiel, mas o profeta sugere sua verdade acrescentando traços secundários, com o risco de obscurecer sua intuição primordial. Assim se explica a longa descrição desses animais fantásticos, tomados do bestiário mítico dos babilônios, que o profeta se compraz em ver a serviço do Senhor; ou ainda a presença, totalmente supérflua, de rodas alucinantes que mostram ao seu modo que a Glória é onipotente em todos os lugares.
            Esmagado por essa revelação, Ezequiel percebe violentamente sua pequenez; em face da Glória ele não passa de um ínfimo e derrisório filho de homem, hesitante atônito (1:28; 2:2; 3:14-17; 22:24); sobre ele a mão do Senhor (1:3; 3:22; 33:22; 37:1; 40:1) caiu (8:1) pesadamente (3:14); sobre ele também, o Espírito do Senhor vem (2:2; 3:24), (11:5), para arrebatá-lo (3:12.14; 8:3; 11:1.24; 43:5).
            Mas o profeta percebe a Glória que sai do templo e se afasta de Jerusalém (11:22.23). O Senhor deixa Sião! Por quê? Como?
            Ezequiel descobre no pecado de Israel o motivo de tão dramática separação; o pecado de Israel é o mau endêmico do qual ele procura entrever a gravidade, a extensão, a profundidade. O pecado é o ato de violência, o crime em que o sangue é derramado (7:23; 9:9; 16:36; 18;10 etc.), que, pelo menos uma vez põe em pé de igualdade com a idolatria (36:18). Pois o pecado capital é para ele, a idolatria (14:1-8), que ele vê praticada sobre toda a colina, sob as árvores (6:3.6.13; 16:16; 20:28.29) e até no templo de Jerusalém (cap. 8). Encontra seus sinais na entrada do pórtico interior (vv. 3-6), no adro (vv.7-13), no santuário de Senhor (vv. 14.15) entre o vestíbulo e o altar (v. 16). O pecado de Israel é também a imoralidade cotidiana; Ezequiel a descreve inspirando-se nos formulários de confissão dos pecados, em uso nos santuários (18:5-9; 22:3-12.23-30)
            Ezequiel diz e repete que esse pecado é um horror, uma abominação (5:9-11; 6:9; 16:22-52); é um gesto de infidelidade, um adultério, um ato de prostituição. O profeta desenvolva este tema na alegoria da menina encontrada, adotada e depois desposada, que finalmente se transforma em “prostitua despótica” (16:30); ele o retoma depois na história das duas irmãs, Oholá (Samaria) e Oholibá (Jerusalém), esposa infiéis que se entregaram a uma insolente prostituição (Cap. 23)
            O profeta finalmente chega a descobrir a raiz da impudica infidelidade, à qual Jerusalém se abandona no orgulho. O pecado dos pagãos de Sodoma (16:49-50), do rei de Tiro (28:2.5.17), do Egito (30:6.18) e de seus faraós (32:12; 35:13) é também o pecado de Israel (7:20.24; 33:28), esposa envaidecida com sua beleza (16:15.56); é também o pecado do príncipe (21:30-31).
            Porventura, Jerusalém não tem uma origem pagã, ela que descende de pai emorita e de mãe hitita? (16:3.45) Sua corrupção, que se manifesta ao longo de toda a sua história (cap.20), é congênita (cap.16), e a permanência prolongada de Israel-Jacó no Egito – onde Deus com a mão erguida, jurou, e disse: Eu sou o Senhor vosso Deus (20:5) – devia ter as mais funestas conseqüências: ele daria a Israel essa paixão pelos ídolos  à qual depois ninguém saberia renunciar (Cap. 20).
            É em meio a esse povo que Ezequiel é estabelecido profeta, com a missão de proclamar a palavra de Deus. Ainda que esta palavra penetre nele como um alimento e o encha de doçura (3:2.3), o filho de Buzi deve esperar encontrar em seu caminho sofrimentos e espinhos toda vez que ele clamar: Assim fala o Senhor Deus (3:11); mas não deve desistir, pois o essencial é, no fim das contas, que os deportados, por mais rebeldes que sejam, saibam que há um profeta no meio deles (2:5).
            Ezequiel será uma “sentinela a serviço de Israel”. Deverá dizer ao perverso: “vais morrer”, a fim de que o mal abandone a sua má conduta e viva; deverá admoestar o justo para que não peque, a fim de permanecer em vida (3:16-21); pois, ao contrário do adágio que se costuma repetir em Israel, ele afirma: Quem pecar, esse morrerá; o filho não arcará com a iniqüidade do pai, nem o pai com a iniqüidade do filho (18:4-20).
            Todavia, se Ezequiel deixar de admoestar o malvado, terá de prestar contas do sangue do mau que houver perecido por falta de admoestação oportuna (3:18). Esta hipótese não é gratuita: nessa época, não faltavam pretensos profetas, que seguiam sua própria inspiração sem jamais ter tido visão. São semelhantes a pedreiros que se contentam com rebocar um muro rachado, com risco de deixar ruir todo o conjunto. Tais são os profetas que publicam uma mensagem de paz sem se preocupar em curar o pecado (Cap. 13).
            A queda de Jerusalém: O pecado não pode deixar de conduzir o povo a um julgamento inelutável; o profeta vê sua realização bem próxima e se obstina a anunciá-lo incansavelmente, por palavras (Caps. 7:9-11) e atos (Caps. 4-5). Até aquela triste manhã, em que alguém se apresenta para lhe declarar a desgraça que aconteceu: Jerusalém foi tomada, destruída, incendiada; os sobreviventes partem para o exílio.
            Foi este o segundo acontecimento capital na vida de Ezequiel. Instigado a não deixar transparecer seu pesar (24:15-27), deve ter sentido uma dor pelo menos igual à de seus companheiros de deportação. Com efeito, o sofrimento e o desespero deles foram tais que chegaram a dizer: estão sobre nós as nossas revoltas e os nossos pecados, e apodrecemos por causa deles! Como poderemos viver? (33:10) ou ainda: os nossos ossos estão ressequidos, pereceu a nossa esperança, estamos esfacelados (37:11).
            Então Ezequiel reagiu; pôs-se a anunciar o castigo para as nações cujos sarcasmos intensificaram a dor dos vencidos. Israel não será o único a sofrer o julgamento. Sem dúvida, o profeta outrora entreviu que povos de fala impenetrável e de língua enrolada (3:6) o teriam escutado melhor do que a casa de Israel; contudo, esses povos agora são convocados ao tribunal de Deus (Caps. 25-32). O Egito é o principal acusado (Caps. 29-32), ele que provocou a traição de Sedacias (17:15), infiel às suas alianças (17:19). Tiro deve comparecer por ter tido intenções injuriosas contra Jerusalém, oprimida pelos exércitos inimigos (26:2), e também depois os países vizinhos da Palestina: Amon, Moab, Edom e os filisteus, todos culpáveis de comportamento odioso com relação ao povo aniquilado (Cap. 25).
            Mas eis que o profeta, arauto trágico, reduzido até aqui ao anúncio de uma desgraça inelutável, transforma-se em pregador de salvação. Já os seus oráculos anteriores não haviam excluído todo motivo de conforto. O tema do “resto” aparece em algumas passagens; sua evocação é rápida, tão rápida, aliás, que se pode ver aí o resultado de algum acréscimo secundário; assim (Cap. 5:1-2) são explicados nos vv. 12 e 13, ao passo que (Cap. 5:3-4), que, ademais, comprometem a lógica do cálculo profético, não recebem nenhum comentário. Contudo, o tema é claramente atestado no (Cap. 9); aí vem à tona a execução dos habitantes de Jerusalém, precedida por um gesto de seleção que põe à parte os homens que gemem e se lamentam por causa de todas as abominações que se cometem em Jerusalém (9:4).
            Haverá, portanto um “resto” (6:8-10; 9:4-8; 11:13; 12:16; 14:22.23), mas tão irrisório, tão frágil (11:13), reduzido talvez aos cadáveres amontoados em Jerusalém (11:7), que sua evocação não pode impedir os exilados de perder sua débil esperança. Então o profeta, sentinela atenta, se posta na brecha. Os mortos viverão, proclama o profeta; e aí temos o maravilhoso afresco dos ossos ressequidos e revigorados (37:1-14): por mais diminuído e aniquilado que esteja Israel, ainda que fosse semelhante a um amontoado de ossos abandonado pela vida, o Senhor saberá fazê-lo reviver ao sopro impetuoso do seu Espírito.
            Um povo que volta à vida, mas a uma vida totalmente diferente da anterior, tal será o Israel resgatado do exílio. Porque, diz o Senhor: Eu vos tomarei de entre as nações, vos reunirei de todas as terras e vos levarei ao vosso solo. Farei sobre vós uma aspersão de água pura e ficareis puros: Eu vos purificarei de todas as vossas impurezas e de todos os vossos ídolos. Eu vos darei um coração novo e porei em vós um espírito novo; tirarei de vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne. Infundirei em vós o meu Espírito e vos farei caminhar segundo as minhas leis, guardar e praticar os meus costumes. Habitareis a terra que dei a vossos pais; sereis para mim um povo, e eu serei para vós Deus (36:24-28).
            Essa vida ideal se realizará num reino reunificado (37:15-28), onde o povo não será mais entregue às prevaricações dos chefes indignos (34:1-10); ele será guiado pelo cajado do Senhor, tornando-se ele mesmo o pastor de seu povo (34:11-16); quanto ao descendente de Davi, ele será simplesmente um príncipe no meio deles (34:24).

ANÁLISE DE ALGUNS TEXTOS
            Capítulo 1: “A visão da Glória”.
            A indicação fornecida pelo v.2, que se refere ao quinto ano do rei Joaquim, torna esse dado cronológico incompreensível. Muitas soluções foram tentadas, mas nenhuma delas conseguiu impor-se. O número 30 poderia ser o resultado de alguma corruptela textual; de todo modo, é provável que a data do acontecimento tenha sido modificada para que o livro começasse solenemente por esta majestosa visão, que apresenta uma espécie de síntese  imaginosa do ensinamento de Ezequiel.
            Quanto ao local “às margens do rio Kebar” deve-se tratar do canal lateral ao Eufrates, que vai de Babilônia a Warka.
            Nas outras visões da Glória, é o templo, essa casa terrestre, que serve de quadro para o encontro do Senhor. Agora é no céu que a visão aparece a Ezequiel, visto que ele se encontra em terra babilônica. Essas indicações topográficas dão todo o sentido da mensagem ezequeliana; longe do santuário de Jerusalém, os deportados não estão a despeito do que se pensa (11:15), longe do Senhor; porque do alto do seu palácio celeste ele reina sobre toda a terra; portanto, está próximo de seu povo disperso entre as nações.
            Essas visões divinas já presente em Jeremias, onde é dotada de proporções modestas e sempre explicada pela palavra (Jr:1:11-15 etc.), a visão adquire em Ezequiel dimensões grandiosas (Ex: 37:1-14), a ponto de eliminar progressivamente o comentário oral (47:1-12). Mais vasta, mais complexa, dando maior espaço às sugestões imprecisas, mas muito mais ricas – da imaginação e do coração, a visão reflete melhor do que a palavra a sublime transcendência do mistério que Deus deixa apenas entrever e que permanece radicalmente inefável.
            Esta descrição dos seres vivos no (v.5) – expressão bíblica para animais – é influenciada pelas imagens murais, pelos motivos decorativos, pelas esculturas que o profeta pôde ver, seja na Palestina (como os marfins representando animais fantásticos, com corpo de leão, cabeça de cordeiro ou de homem, asas de águia, encontrados na costa mediterrânea), seja, sobretudo em terra de exílio. A descoberta, na Mesopotâmia, de estátuas de personagens divinas dotadas de quatro rostos torna menos surpreendente à visão de Ezequiel.
            No (v.10), Ezequiel viu na terra de sua deportação, diante dos templos, estátuas de animais – leões, touros, garantindo-lhes a guarda e mostrando sua dignidade.  É esse mesmo bestiário símbolo mítico de todas as forças do universo, que ele se apraz em entrever em torno do Senhor, proclamando a sua sublime grandeza.
             (v.12) Ezequiel diz aqui, como no (v.20), “o espírito”; em outro lugar (2:2), ele diz um espírito; não é certo que ele queria sublinhar matizes diferentes com formulações variadas.
            No (v.15) Ezequiel diz que viu ao lado dos seres vivos uma roda, descrição semelhante a (10:9-13). Existem nos santuários antigos carroças utilizadas para diversos fins: transporte das vítimas, lavagem das oferendas, etc. Um deles, encontrado em Chipre, comporta um chassi, montado sobre quatro rodas, em superestruturas feitas com um quadro decorado com animais fantásticos. O estranho carro esboçado por Ezequiel tem analogias com esse objeto.
            (v.28) Com seus predecessores, Ezequiel designa por Glória o Ser Divino enquanto se revela; é a manifestação do poder, da santidade (cf. 28:22, onde os dois temas são postos em paralelo) de Deus, perceptíveis através dos sinais: fenômenos cósmicos (tormenta 1:4), desenrolar histórico (28:22), símbolos litúrgicos (8-11; 43; 44). Contudo a representação ezequielana apresenta certas particularidades: a Glória tornou-se imediatamente visível, pelo menos aos olhos do profeta, numa explosão de luz; além disso, ela tem uma aparência bastante semelhante á forma humana; por fim, aparece como realidade autônoma, quase hipostasiada: sai do templo, se posta acima da colina próxima, retorna ao santuário. Por outro lado, Ezequiel busca suavizar a novidade e a audácia de tais expressões por fórmulas de aproximação: “a semelhança de” etc. Mas ele busca aproximar os dados dificilmente conciliáveis que são: o sentido da transcendência e a afirmação da proximidade de Deus; a convicção da presença divina no santuário e a certeza de que a Glória não pode ser atingida pela iminente ruína da Jerusalém infiel.

            Capítulo 37: “a visão das ossadas”.
                  O capítulo 37 de Ezequiel é introduzido com a afirmação de que "a mão de Javé pousou sobre mim e o espírito de Javé me levou e me deixou num vale cheio de ossos". 
            A fórmula "a mão de Javé pousou sobre mim" aparece sete vezes em Ezequiel e sempre serve para introduzir um novo oráculo ou novo capítulo.
            Este texto é um dos mais célebres de Ezequiel, respondendo aos problemas e situação do povo, num tom de esperança e consolação. É muito rico no que se refere ao sopro, ao espírito = rûah. É o sopro de vida, o hálito, é ele quem faz viver os ossos secos. Além disso, a profecia diz que ele "vem dos quatro ventos", ou seja, o sopro deve vir de toda parte. É o espírito que age no profeta para inaugurar a ação e a palavra profética, e nos israelitas para instalá-los em seu país.
            Esse vale do v.1 trata-se provavelmente do vale onde o profeta teve uma visão (cf. 3:22).
            No v.2 Deus faz o profeta circular no meio de ossos ressequidos, essas ossadas acumuladas no solo do vale são um sinal de desgraça particular, porque, no pensamento hebraico, era preciso ser enterrado com os pais no túmulo da família. (Isaac, Gn-35:29) (Jacó, Gn50:5) etc.
            No v.5 nos originais estão assim: “Farei vir sobre vós um sopro para que vivais”. Ou seja, a respiração. Pode-se também traduzir sopro por espírito; mas aqui, ao contrário de (36:26-27), a visão está mais centrada na idéia da vida que na do dom do Espírito.
            O v.11 nos mostra os israelitas exilados, abatidos, cuja esperança está morta, estando eles mesmos de certa forma mortos, Ezequiel anuncia a vida. No próprio seio do desespero e da morte, o Espírito de Deus, cuja palavra profética vai suscitar a vida, fará jorrar um reinício cujo anúncio deva devolver a esperança aos deportados (cf. Is-40:1-2; 54:7; Ez-28:25). Os israelitas andavam dizendo: 'Nossos ossos estão secos e nossa esperança se foi. Para nós tudo acabou'. “Pois bem, profetize e diga: ‘Vou abrir seus túmulos, tirar vocês de seus túmulos, povo meu, e vou levá-los para a terra de Israel.”
            Os ossos são o povo de Israel que lamenta: “os nossos ossos estão secos, a nossa esperança está desfeita, está tudo acabado”.
                   O futuro para Israel só pode ser entendido pela categoria de vida a partir da morte. A visão dos ossos ressequidos expressa a promessa incondicional de Deus para o futuro.
            O v.16a O profeta fala sobre a divisão do reino de Salomão em dois, (cf. 1Rs-12).
            No v.16b José, pai de Efraim (Gn-51:52), representa como seu filho as tribos do reino separado do norte, ao passo que Judá representa o reino hierosolimitano. Ezequiel anuncia o fim da separação em dois grupos opostos de tribos (cf. Is-11:13; Jr-3:18).
            Esse relato do v.23 em antigas versões dizem: “Eu os livrarei de todas as suas apostasias ou de todas as suas abominações”.
            O v.24 nos mostra um pastor único como em (34:23). Da mesma forma que Israel tem um só Deus, assim haverá um único pastor (cf. Jr-23:4-5; Jo-10:16), porque ele se terá tornado um só povo (cf. 1Rs-12:20-33; Ez-37:15-28).
            No v.27b diz: “Eu os estabelecerei”. Está tradução é incerta. O texto parece mal transmitido. O aramaico diz: “eu os abençoarei”; mas a palavra está ausente no grago e no siríaco.
            Quanto ao santuário do v.24 Ezequiel pensa no povo do templo (caps. 40-44) que está no centro do país.

PERSPECTIVAS FINAIS
            No fim de sua carreira profética, Ezequiel se aplica a mostrar o caminho do Israel renovado. Inicialmente ele vê o povo conseguir, no fim dos anos (38:8), a vitória que o livra de todos os seus inimigos. O povo os enfrentou num combate colossal, reencontrando todos os seus adversários de todos os tempos, por trás da face belicosa de seu campeão, Gog, da terra de Magog, grande príncipe de Méshek e de Tubal. Ele os enfrenta e a todos destrói; com seus armamentos terrificantes ele faz um fogo de alegria; abandona inúmeros mortos deles à rapacidade dos abutres e ao cuidado dos coveiros, por sete meses interminavelmente ocupados em enterrar os corpos dos vencidos (caps. 38 e 39).
            Por fim, Ezequiel imagina Israel vitorioso já instalado numa palestina também renovada. Vê a terra matematicamente partilhada em zonas que limitam as fronteiras com absoluto rigor (cap. 47:48); ele a vê banhada com a água maravilhosa, que jorra do templo (Cap. 47). Será o lugar privilegiado onde, conforme todas as suas regras (Caps. 40 e 46) se desenvolverão os cultos que celebram a Glória do Senhor que voltou ao santuário (43:1-12). Pois, de agora em diante, o templo será o centro da vida do povo, o coração de um mistério que o profeta faz entrever em uma só expressão: “O Senhor está aí” (48:35).



[1] O autor é bacharelando em teologia pelo (ICEC) Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos, além de especialista em escatologia e angelologia pelo Ide Missões.



Nenhum comentário:

Postar um comentário